A insignificância do ser (ou monólogo de um corcunda)

Ao contrário do que se costuma dizer sobre o Radiohead, não considero Ok Computer, apesar do sucesso de crítica e o tão divulgado e aclamado pelo público, In Rainbows, os melhores álbuns da banda. Pode soar previsível, mas The Bends, dito como o álbum mais pop, é o que me enche de nostalgia com suas músicas repletas de um inconformismo que se desvairessem num grito de revolta entoado por Thom Yorke.
O álbum pode parecer, aos ouvintes de primeira viagem, hermético, esdrúxulo e até um pouco prolixo, dando a impressão de uma obra incompleta e fragmentada, devido, talvez, ao fato de que as composições do grupo visam, muita das vezes, abordar, através de uma intencional desordem ou embaralhamento de informações subjetivas, questões de cunho puramente existencialista.
Mas o que aparentemente parecia ser um circunlóquio de informações, se mostra como uma construção meticulosa que tenta aludir ao turbilhão caótico do fluxo mental de pensamentos, sentimentos, sensações, impressões e flashes que se desencadeiam, sem lógica aparente, na nossa consciência, ou de maneira mais concisa, o monólogo interior.
Uma das temáticas recorrentes do álbum é sobre a insignificância do ser, discorrendo-a de modo a reconhecer (para não dizer cultuar) a consciência da própria fragilidade perante à vida, e de tanto remoer tal condição, passasse a conhecer-se integralmente (seria, talvez, alguma alusão ao "homem subterrâneo" de Fiódor Dostoiévski?). E é justamente isto que me atrai nesse álbum, a construção meticulosa de músicas que funcionam como uma projeção labiríntica de nosso universo psíquico, e que de tal modo, conseguem exteriorizar a intimidade do homem oprimido pela existência e não necessariamente pelas condições sociais ao qual ele concerne ou qualquer outra explicação que se queira dar.
Acho que não existe nenhuma terminologia humana que explique essa sensação que o álbum nos causa (talvez a explicação mais palpável que posso ser dita, seja a inevitável sensação que o alcoólotra inveterado sente ao despertar, com a amarga volta à vida cotidiana e a atroz descida do véu). É uma sensação que ao mesmo tempo nos causa um abatimento, uma avidez no coração, mas também, uma emoção meio que agradável (para não dizer poética).
E assim, à medida que uma intimidade cada vez maior se tem com o álbum, mais amargamente (ou não), uma sensação de inutilidade de qualquer tentativa de se alegrar o espírito toma conta do nosso ser, como se fosse uma irradiação incessante de uma profunda e irremissível tristeza que se esparzia por todos os objetos do campo físico e moral.
Durante a sua audição, podemos perceber, ao longo das melodiosas e lúgubres canções, a variação no modo de cantar de Thom Yorke, passando desde uma vocalização trêmula e indecisa (quando seu ardor parece cair em completa inação) à uma espécie de concisão enérgica (uma enunciação abrupta, pesada e lenta, lembrando a maneira gutural e perfeitamente modulada que se pode observar na fala de um bêbado perdido ou no incorrigível fumante de narcóticos, durante os períodos de sua mais intensa agitação) criando assim, a sensação de estarmos respirando uma pesada e cinzenta atmosfera de tristeza e nos despertando para a noção de que toda essa apatia, que de repente, nos deparamos, fosse algo bom, uma qualidade inerente aos poucos "párias existências" que possuem a compreensão da inutilidade das relações humanas diante de uma sociedade tão transtornada e de que se tornar impassível à ela, de modo a não reconhecer em seus atos e nos dos outros o que é certo ou errado, é a melhor maneira de ainda se encontrar um pouco de ventura (não sei... mas talvez esteja incluso, nesse contexto, a visão doentia ou salutar, depende do seu ponto de vista, do misantropo).
Além disso, os soturnos riffs e distorções da guitarra de Jonny Greenwood e Ed O'Brien, ditas destoantes e fastidiosas por aqueles que não estão acostumados com o som do Radiohead, ajudam à criar essa noção de uma atmosfera degradada e um tom depressivo ao imaginário de quem ouve The Bends, e mais uma vez, ajudam a projetar uma visão intimista de uma mente desolada e atormentada por frustações familiares, sociais, emotivas e sexuais que se exterioriza ou esteriotipa na forma do corcunda que se curva sobre si mesmo como forma de abster-se de uma sociedade que o enoja mas que ao mesmo tempo o subjuga.
A quebra da linearidade na narrativa das letras das músicas parece que intercepta presente-passado de modo que já não é mais possível distinguir entre realidade e os delírios de um solipsista alucinado que extravasa seus pensamentos mais profundos como forma de autoconhecimento, de desabafo, de confissão (para não dizer expiação ou catarse) de traumas que marcaram o passado e irremediavelmente determinam o presente, condicionando-o a uma visão de mundo obscurecida por subjetivismos de acentuado cunho pessimista que complicam a relação com o presente e deformam a apreensão do passado como uma maneira de obter absolvição para uma realidade inerte e dilaceradora.
A música Street Spirit (Fade Out), que desfecha o álbum com grande eloquência musical, nos transmite de maneira bem clara essa noção de uma atmosfera niilista que domina boa parte do álbum. Nela, podemos perceber a escolha criteriosa de harmonias, melodias e letras que geram uma impressão da inutilidade de uma existência exígua, decadente e insignificante. Uma existência fácil de ser corrompida pelos caminhos furtuitos que a vida enseja. E quase que como um mecanismo de fuga, busca, quase sempre, refúgio no passado, na inocência dos primórdios da vida, como se a ignorância fosse algo bom (como o louco que não consegue perceber a própria sandice), mas logo que sobrevê que não encontra mais a tranquilidade de outrora e não adianta se esconder por de trás de tal "placebo psicotrópico", pois não é mais como era "naquele tempo" e que se encontra, impreterivelmente, como o molambo que mendiga desvairado pela cidade que o puiu e sujou, rogando por uma caridade que lhe garanta a vida hoje, mesmo sabendo que ela irá prolongar sua miséria para amanhã.
Conservarei para sempre a lembrança das muitas horas solenes que me peguei em companhia de The Bends. Mas mesmo depois de toda essa enfadonha divagação, ainda considero que qualquer tentativa de procurar extrair as sensações tão vívidas, que ainda se acham presentes em meu espírito e me fazem estremecer, para contê-las no simples âmbito das palavras, seria em vão. Mas de uma maneira um tanto que singela, posso dizer que além da excentricidade e experimentalismo harmônico que culminou num dos grandes marcos na cultura musical contemporânea, representando um estilo de vanguarda do down rock que iria influenciar toda uma geração de músicos do porvir, mas que ao mesmo tempo foi motivo de crítica na época pelos ditos "entendidos do assunto", The Bends conta, acima de tudo, com a hipnotizante interpretação, que detêm e subjuga a atenção, de Thom Yorke; um dos poucos mortais que conseguiu musicar um sentimento... a insuportável melancolia.

Comentários

  1. tal análise requer viver 'the bends', e não só ouví-lo. impressionante. vou reouvir com novos ouvidos ;)

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  2. Maravilhoso seu texto. Thom Yorke é genial e Radiohead é vida.

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  3. Érlon, muito bom ler sobre Radiohead através dessa sua eloquência textual para sensações. Só conseguiria descrever uma imagem que o álbum me passa: uma manhã de domingo (pra contrastar com o pessimismo) com um qualquer solitário sem levantar da cama por horas remoendo tristeza. Mas também o álbum me parece conter raiva diante da impotência de se sentir melhor.
    Tive uns insights, umas epifanias sobre coisas da vida com algumas metáforas suas, como a mendicância para sobreviver e prosseguir com a miséria (achei genial). Adorei o texto e já estou esperando as próximas. =)

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  4. Fabuloso texto de um dos marcos dos anos 90.

    Traduziu o sentimento do ábum de forma lúcida mas nao simplória (como já é recorrente) e trouxe um olhar mais denso para um obra que precisa sempre (mesmo para um fã) ser revisitava.

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  5. Ah, a eloquência... Isso é dom.

    Quase conseguiu me convencer que The Bends é o melhor album do Radiohead.

    Apesar da tentativa de me convencer, continuo preferindo Pablo Honey, porém, sem discordar de tudo que foi dito sobre The Bends...

    ;*

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  6. RADIOHEAD - mas quem é que não ama esta magnifica banda?
    Tenho que dizer que as tuas opiniões são as mais detalhadas, pormenorizadas, mais brilhantes e bem compostas que alguma vez vi!
    Simplesmente perfeito.

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  7. Legal o blog hein! Não vai continuar?

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  8. Gostei do texto, porém acho complicado tentar dar alguma explicação pra radiohead.

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  9. The Bends também é meu álbum favorito. na verdade, gosto muito dos primeiros álbuns e os escuto na íntegra. E preciso admitir pra mim mesma que prefiro o radiohead de antes, e que depois de KID A eu realmente não consegui mais ouvir um álbum inteiro sem pular alguma música.

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